ORIGEM
ORIGEM é um projeto visual que retrata LGBTQIA+ originárias > muito antes da colonialidade nomear com seus termos. o primeiro caso de violência homofóbica no brasil - que se tem registro - ocorreu com um tupinambá, chamado tibira (que é também a designação tupi para ""dissidentes"" sexuais), em 1614, ordenado pela igreja católica.
estamos em 2020 e a liberdade de ser o que se é insiste.
e exige respeito.
sobre as pedras no alto da serra, bia pankararu, seu filho otto e a companheira viviane, arqueiam flechas de liberdade em corpo guerreira-mulher-que ama outra mulher. sob a mangueira ancestral, ao lado do córrego doce, ouvimos sobre a andorinha-homem, num vôo de poder amar outro homem. plantadxs na terra, escavam espaços-espelhos de habitar corpos vivos e ancestrais, seguindo firmes e juntxs sobre tornozelos raízes.
essas imagens convidam aos olhos muito mais do que representações. são faíscas acesas de uma mudança profunda na História represada pela hidrelétrica da colonização. tentaram levar à extinção a língua e o amor, mas no encontro, à luz da lua sobre a testa, guiam o trânsito constante de regenerar as nascentes de cada existência em desejo de ser o que se é.
desbravar um espaço coletivo pra que outras irmãs possam deixar se assumir: “eu só quero respeito, eu não quero nada demais das pessoas. as pessoas deviam julgar a gente pelas nossas atitudes, não pela nossa orientação sexual, isso que me revolta.”
desenhando sobre as fotografias, ritualiza-se a cura: "envolvo meu corpo atrelado ao cajueiro, que a casca dele é usada pra fazer uma solução cicatrizante pra quem tem feridas muito profundas, tipo cortes rentes”.
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no início da década de 90, a Organização Mundial da Saúde retira a homossexualidade da lista de patologias, ressignificando todo um estigma; mas que não finaliza imediatamente as problemáticas sociais, que ainda vêem questões de gênero e sexualidade "dissidentes" [entre aspas, afinal, no contexto de um país colonizado, onde os costumes nativos foram silenciados e exterminados sistematicamente, o que seria o "normal"?] como algo inaceitável, abominável ou imoral.
a homossexualidade e a transsexualidade, nominações ocidentais, foram transformadas, ao longo de mais de 500 anos, em monstruosidade, loucura, doença - o que implica em diversas violências físicas e psicológicas. concepções que infelizmente chegaram a territórios variados, tanto na cidade, quanto na aldeia.
no período das grandes navegações, a colonização por via da catequização forçada levou consigo algo habitual entre os indígenas: o amor mútuo, suas línguas maternas e a concepção de igualdade entre as pessoas - que tenta-se destruir até hoje. algo que anos mais tarde influenciou negativamente nas relações, pois muitos LGBTQIA+ são forçados a casar-se com pessoas do sexo oposto, ou levar uma vida inteira de apagamento e apatia, apenas para encaixar-se em padrões que o entorno, anteriormente interferido, acaba impondo.
em relação à gênero/sexualidade, muitxs indígenas descobrem suas reais identidades com pouquíssima idade, mas, na falta de outras referências, torna-se complexo entender-se. quantas pessoas trans/travestis, lésbicas, gays e bissexuais dentro de suas aldeias, querem formar uma família? construir um lar e ali viver, agradecendo todos os dias às forças encantadas por sua descendência?
é nítido o apoio que muitos recebem de suas famílias, algo que é significativo em um momento de tamanha vulnerabilidade;
cada LGBTQIA+ aldeada relatou diferentes vivências, mas a necessidade de diálogo e cuidado com a saúde mental foram pontos recorrentes. o constante questionamento (próprio e exterior) e o medo do errado são decisivos para a busca de entendimento sobre essas questões.
“Eu nao baixei a cabeça. Fui buscar conhecimento. O que vai mudar a sua vida é a educação", finaliza Edmar.
todas essas questões são completamente ligadas ao território, à cultura, à conexão com a natureza para seus livres exercícios do bem-viver.
é sobre sair da condição de invisível tanto no que diz respeito a ser indígena quanto de ser LGBTQIA+.
verão de 2020,
por Antônio Vittal Neto Pankararu e Laryssa Machada
fotografia Laryssa Machada
intervenção gráfica Antônio Vittal Neto Pankararu
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este projeto foi realizado com o suporte financeiro do Ignite Fund, Universidade de Leeds, UK, em diálogo com Thea Pitman e Paulo Pepe, professorxs da mesma universidade.
“eu tava me prendendo a um pensamento de quem veio torturar o meu povo. não o pensamento do meu povo. parece que a cada dia alguém vinha e cortava minhas asas, até que chegou esse dia que eu disse: eu vou viver.
prezo muito a liberdade das andorinhas.”
léo pankararu
“branco que disse que isso era errado. que vai pro inferno. nossa, eu tinha muito medo de ir pro inferno”.
“têm muitos que não entendem, que não querem abrir a cabeça pra isso. mas depois que a gente fez o nosso movimento, mostrando quem a gente é, a gente abriu portas.”
edmar e leonardo pankararu, PE
rebecca pankararu, PE
lesley pankararu, PE
flávio tupinambá, BA
leonardo pankararu, PE
antônio pankararu, PE
beatriz pankararu, PE
edmar pankararu, PE
brendo tupinambá, BA
bambam pankararu, PE
mendonça tupinambá, BA
herbert tupinambá, BA
ORIGEM
english version >>>
ORIGIN
ORIGEM/ORIGIN is a visual art project that portrays LGBTQIA+ indigenous people > long before coloniality named them with these terms. the first case of homophobic violence in brazil – of which we have records – happened to a tupinambá man, called tibira (which is also the tupi word for sexual ““dissidents””), in 1614, ordered by the catholic church.
we are now in 2020 and it’s still necessary to push for the freedom to be what you are.
and to demand respect.
on the rocks at the top of the mountain, bia pankararu, her son otto and her girlfriend viviane, tenses arrows of freedom as bodies of warrior-women-who-love-other-women. under the ancient mango tree, beside the gurgling stream, we learn about the man-swallow and his flight to be able to love another man. with their feet firmly planted on the earth, they scrape clear mirror-spaces where living and ancestral bodies can live together, strong and united.
these images offer our eyes much more than simple representations. they are the sparks of the beginning of a profound change in the History of the hydroelectric dam that is colonisation. the colonisers tried to extinguish our language and our love, but in moonlit encounters these sparks ignite the movement to regenerate our existence and satisfy our desire to be ourselves.
it’s about creating a communal space so that other sisters can feel comfortable coming out: “I just want respect, I don't want anything more from people. people should judge us by how we behave, not by our sexual orientation, that's what infuriates me.”
drawing on the photographs is a kind of ritual cure: "I wrap my body around the trunk of the cashew tree, because its bark is used to make a healing balm for those who have very deep wounds, right down to the bone".
“the whites said this was wrong. that we would go to hell. wow, I was really scared of going to hell. ”
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at the beginning of the 90s, the World Health Organization removed homosexuality from its list of diseases, thus framing the stigma differently; but that did not immediately mean that society stopped seeing it as problem, where forms of gender and sexuality considered "dissident" [we use scare quotes here - after all, in the context of a colonised country, where native customs were systematically silenced and exterminated, what is "normal"?] are seen as unacceptable, abhorrent or immoral.
homosexuality and transsexuality, Western terms, have been transformed, over more than 500 years, into monstrosity, madness, disease – and this implies a whole range of forms of physical and psychological violence. these are conceptions that have unfortunately taken hold in all sorts of different places, from the big cities to the indigenous villages.
“there are many people who don't understand, who don't want to open their minds to it. but after we started showing who we are, we opened doors.”
in the period of the great navigations, colonisation by means of forced conversion to christianity deprived indigenous peoples of many things they had in common: mutual love, their mother tongues and the concept of equality between people – things that are still being repressed today. even now this exerts a negative influence on relationships, as many LGBTQIA+ people are forced to marry members of the opposite sex, or spend their lives in denial and frustration, just so they can fit into patterns that the above-mentioned social environment imposes.
in relation to questions of gender and sexuality, many indigenous people discover their real identities at a very young age, but, with no public acknowledgement of their existence, they struggle to really come to terms with their own identities. how many transsexuals/transvestites, lesbians, gays and bisexual people want to raise their own families within the space of their communities? how many want to build a home and live there, offering daily thanks to the spiritual forces for being indigenous?
the support that many receive from their immediate families is clear, and this is really significant at a time of such vulnerability;
each indigenous LGBTQIA+ person interviewed reported different experiences, but the need for dialogue and care for one’s mental health were recurring points. the constant questioning (their own and that of others) and the fear of being in the wrong are decisive in their search for self-knowledge in relation to these issues.
“I didn't bow my head. I went to seek knowledge. What will change your life is education", concluded Edmar.
all of these issues are profoundly connected to their land, their culture, their connection with nature for their freedom to live a good life.
it’s about emerging from a state of invisibility both in terms of being indigenous and of being LGBTQIA+.
summer, 2020
by Antônio Vittal Neto Pankararu and Laryssa Machada
photography Laryssa Machada
artwork Antônio Vittal Neto Pankararu
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This project was carried out with the financial support of the Ignite Fund, University of Leeds, UK, in dialogue with university lecturers Thea Pitman and Paulo Pepe.
“I kept thinking the way that those who came to torture my people think. that isn’t the way my people think. it felt like every day someone came and cut my wings, until the day came when I said: I will live.
I really love the way the swallows fly free.”
léo pankararu